- Há uma força oculta e invisível, como uma enorme prensa que me esmaga através de pessoas diversas reproduzindo um mesmo comportamento.
Diário de Lia em 15 de Fevereiro de 2015
Lia: Sessenta e cinco dias! Eu não consigo esquecer, como é ser humilhada, tratada como lixo, um mero... depósito, objeto de desejos doentios de alguém que eu mal conheço. Não aguento mais chorar e pensar que poderia ter pego outro caminho, ou nem saído de casa, pra que ir ao cinema numa segunda-feira? Eu estava vestida decentemente, será que fiz algum gesto, alguma coisa? Meu Deus! O que será que foi? E que Deus? Que permitiu isso e ainda permite que aconteça com crianças.
Lia: Cada dia eu durmo e acordo pensando no que aconteceu e...
Cláudia: Você não consegue esquecer. Eu compreendo sua dor, estou aqui para te ouvir e esse é o seu espaço, pode falar o que quiser, se precisar, chore, existe uma estrutura emocional que está abalada e nós precisamos reparar, faremos isso, leve o tempo que for, mas, por hoje...
Lia: Eu entendo.
Lia saiu da terapia aquele dia pior do que entrou e se perguntou se não deveria esquecer de vez esse maldito abuso em vez de ficar remexendo as memórias, mesmo, que antes da terapia, também não estava conseguindo se ver livres das imagens, dos flashes. Não era só o abuso sexual que Lia não conseguia esquecer, mas, tudo que escutou na delegacia quando quis fazer B.O. Zumbidos em sua mente diziam "O que estava fazendo na rua tão tarde da noite...", "E porque não falou para ele parar...", "Era só ter fechado as pernas que ele não ia fazer nada", "Vai
prejudicar um homem de bem trabalhador porque deu pra ele e depois se arrependeu"?
Foram coisas horríveis que a deixaram chocada, o estupro e o machismo, ela não conseguiria esquecer tão cedo, provavelmente nunca mais, estava convencida de que o que restava para ela era aprender a conviver com esses fatos e ressignificar a dor. Suspirou resignada quando chegou em casa e comeu algo pois o estômago estava vazio e já lhe causava náuseas, estranhou continuar sentindo os enjoos depois de comer, então tomou um rápido banho e adormeceu na cama, com a TV ligada ouvindo Bonner, boa noite, foi a última coisa que ela se lembrava de ouvir ao acordar na manhã seguinte.
"Como pôde nada acontecer com esse desgraçado que me fez sofrer, ouvi dizer que está fugido para Cuiabá, há tempos me olhava com maldade e fazia brincadeiras, mas, eu não pensava... Meu Deus, Eu não imaginava! Achei que se tratasse apenas de um vizinho chato."
Pensar nisso deixou-a enjoada outra vez, o que fê-la colocar para fora todo o café da manhã. Ouviu uma batida na porta e abriu depois de certificar-se de que era uma pessoa amiga.
Aurélia: Está tudo bem? Ouvi os barulhos do meu apartamento - Elas eram vizinhas de paredes, paredes não muito discretas - fiquei preocupada.
Lia: Estou péssima! Estou despedaçada e como se não bastasse tudo o que aconteceu, eu estou enjoada, o tempo todo, todos os dias!
Aurélia: Melhor você ir ao médico, deveria ter ido desde o ocorrido...
Lia: Não fui, não fui mesmo, imagina, depois de ser tratada daquela forma na delegacia ser ainda mal tratada no hospital, não conseguia parar de chorar, eu devo ter feito algo muito terrível em outra vida para merecer isso. Não é possível que Deus deixe coisas assim acontecerem.
Aurélia: Deus... - pensativa por um instante recobrou a consciência de tempo e espaço - vamos, vou te levar para o hospital, tem que fazer exames, ver se não está com alguma doença por causa... Por causa do que aconteceu.
Atônita, perplexa, desamparada e sem chão. Com o resultado do exame na mão Lia jamais poderia acreditar no que seus olhos viam sem que Aurélia estivesse ali confirmando o que estava escrito no papel. Grávida, a palavra caiu como uma bomba aos seus ouvidos, sentia se fraca e enjoada, porém, algo não lhe permitia perder os sentidos, raiva, muita raiva.
Lia: Não posso crer, depois de tudo que eu passei, aquele indivíduo destruiu minha vida! Como eu vou ter uma criança de uma violência! De tudo que eu não quis! De tudo que eu neguei. Como olhar para essa vida sem sentir a dor, o nojo e o desespero que eu senti novamente? Como esquecer, e se ele parecer com o... Pai? Não posso chamar aquilo de pai do meu filho, aliás, eu não vou ter essa criança, não vou!
Aurélia: Tenha calma Lia! Vamos para casa, descanse e depois vemos o que fazer.
Lia: Espere - sacou da bolsa o celular - vou pesquisar, eu já vi no Facebook, já vi notícias, mulheres que foram violentadas têm direito ao aborto nos termos da lei.
Depois de muitos pesquisar em diversos sites, Lia finalmente cedeu e foi para casa descansar, certa de que no dia seguinte se levantaria cedo para solicitar o procedimento de interrupção da gravidez. Foi o que aconteceu, o dia mal raiou e ela já estava de pé sentindo um embrulho no estômago, quando era criança sua mãe costumava fazer chá para ela tomar quando
se sentia assim, sentiu saudades e no mesmo instante olhou para o telefone:
Dona Dita: Alô?
Lia(com a voz embargada): Oi mamãe! Sou eu!
Dona Dita: Eu sei minha filha, acha que eu não reconheço sua voz doce e meiga? Você está bem? Parece estar chorando.
Lia - O que eu tenho pra te falar é muito sério, estou a beira do pranto! Dona Dita: Pode falar meu amor, estou aqui para lhe ouvir.
Lia: Mamãe, descobri que estou grávida, aquele maldito deixou um feto em mim e eu não posso ter essa criança, não posso! É demais pra mim, tudo o que tenho passado, tenho vivido com os nervos em frangalhos, é demais para mim ter que viver olhando para a cara de uma criança que vai me lembrar tudo o que eu sofri! Não, não posso! Eu vou ao hospital, vou tirar esse filho.
Depois de ouvir tudo emudecida, Dona Dita não poderia acreditar naquela situação, mas, como, mulher de fé, fervorosa e fiel tinha certeza de que aquela não era a solução.
Dona Dita: Minha filha, você não está raciocinando direito, não é assim que se resolve as coisas, saiba que Deus escreve certo por linhas tortas e se ele tá te dando esse filho, talvez seja para você tirar algo muito bom de algo muito ruim, um filho é sempre uma bênção e...
Lia: Benção? A senhora tem coragem de chamar de benção mamãe, eu carrego um fruto de um estupro, como eu vou dizer isso para uma criança, que ela foi concebida dessa forma! E quando quiser saber quem é o pai? O que vou dizer?
Dona Dita: Diga que é o Sérgio, vocês se casam.
Lia: A senhora só pode estar louca por ter uma ideia dessas, além do mais, terminei com Sérgio depois do que aconteceu, nunca mais conseguirei fazer sexo com nenhum homem e ele não estava disposto a entender isso. Obrigada mãe por seus conselhos, mas, não... Preciso ir agora.
Dona Dita: Vai com Deus minha filha, e pense no que eu te falei. Não faça nada de cabeça quente.
Lia não poderia acreditar no que ouvira da própria mãe, não estava disposta a manter aquele filho e muito menos casar com Sérgio, não, ela resolveria isso agora mesmo, iria para o hospital naquele momento. Foi o que fez, porém, qual não foi sua surpresa quando se negaram a fazer o aborto, o médico fora categórico:
Dr. Lucas: Sou um médico honrado, eu honro meu compromisso com a vida, sou acima de tudo um homem temente a Deus e isso eu não faço.
Não adianta bater em três ou quatro hospitais depois, em todo lugar era uma dificuldade diferente, ou diziam que não faziam o procedimento, o médico se negava, pediam o B.O não existia desde o ocorrido na delegacia.
Desesperada Lia entrou em prantos, não conseguia se manter calma, já em casa, se atirou sobre a cama e chorou em prantos até adormecer.
Pegar o celular foi a primeira coisa que Lia fez ao acordar, havia oitenta mensagens de um grupo desconhecido no whatsapp, foi adicionada, mas, por quem? Ao olhar os contatos no grupo reconheceu a colega de faculdade Heneida, única conhecida, somente ela poderia tê-la adicionado. O nome do grupo, um tanto curioso, a chamou atenção: "Remédios para Dor de Barriga". Começou ler as conversas, rolando rolando a tela para baixo, via alguns depoimentos: "Estou com dor de barriga há 6 meses e não vejo a hora disso passar...", estou com essa dor de barriga há 3 meses já fui em vários hospitais e nada de resolverem...", "estou com dor de barriga por culpa do meu padrasto", todas mulheres, todas pediam o remédio que custava uma fortuna! Mas, Lia entendeu e essa seria a sua saída, tomou coragem e postou:
Lia 6:25AM: Estou com dor de barriga há dois meses e meio e preciso desse remédio o quanto antes.
A resposta foi imediata, uma conta sem foto a acionou no chat privado e recolheu seus dados pessoais e em pouco menos de uma semana o remédio chegou. Lia pesquisou sobre ele na internet, era uma droga
abortiva proibida no Brasil, seguiu as recomendações e tomou. Os dias que se seguiram foram de muito enjoo e dores pélvicas, muito sangue se esvaiu de seu útero criando cenas nada prazerosas de se lembrar.
Com tudo o que passei, não posso dizer que sou feliz hoje, nem que esqueci, mas, tenho algo a menos para lembrar. Estava entre duas escolhas horríveis e nenhuma delas seria boa, hoje eu sei que não me traz paz ter feito o que fiz, aquele ser parecia tão inocente e indefeso e eu sou um monstro, criado por outro monstro. Se houver Deus, eu só peço que ele me perdoe, a sombra desse ato vai me acompanhar para sempre. Nunca mais olhei um homem com amor, muito menos com vontade de tê-lo, nunca mais olhei para uma criança com a consciência tranquila, minha vida se tornou um inferno absoluto e eu não sei mais se vale a pena viver... Até algum dia se houver algo lá fora.
Com amor, Lia.
- Há uma força oculta e invisível, como uma enorme prensa que me esmaga através de pessoas diversas reproduzindo um mesmo comportamento.
Diário de Lia em 15 de Fevereiro de 2015